quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Por mais de Dois Séculos, a Varíola foi o Maior Flagelo da Capital

Desde a sua fundação em 1554 até o início do Século XIX, São Paulo teve como maior flagelo um inimigo invisivel e implacável: a varíola ou 'bexiga' como ficou popularmente conhecida no Pais. Responsável por milhares de mortes nas Capitanias de São Paulo e São Vicente, o mal só foi contido com a descoberta da vacina contra a moléstia.
A praga se abateu sobre os paulistas pouco tempo depois da conquista do planalto. Em 1563 dizimou populações indígenas da Capital e fez desaparecer várias aldeias criadas pelos jesuítas. O pior período foi entre 1730 e 1799, quando a varíola se transformou em epidemia levando ao desespero os governadores da época, que pouco ou nada podiam fazer. Casas abandonadas e ruas abarrotadas de ‘bexiguentos’ eram cenas comuns. Para complicar, os médicos eram poucos e a higiene pública e o saneamento da cidade deixavam muito a desejar, com esgotos a céu aberto e lixo jogado por toda parte.
As populações, livre e escrava, pagavam as conseqüências, pois apanhavam quaisquer doenças – de um simples resfriado até moléstias mais graves como lepra e tuberculose – e se viam sem atendimento. Em São Paulo, nas primeiras décadas do século XVIII, só há registros dos trabalhos dos médicos Simão Ferreira Machado e de Antônio da Silva da Mota. Este último passou pelo crivo do cirurgião-mor de Lisboa, que o considerou apto e suficiente para a profissão.
Em 1722, o Senado da Câmara Paulista finalmente tomou providências exigindo a presença de facultativos (profissionais de medicina) na Capital. Para isso, os senadores aprovaram honorários de 200 mil reis por ano aos médicos que tratassem dos doentes pois, na época, eram preocupantes os casos isolados de variola. Em março de 1724, o Senado convocou o médico Antônio da Mota para realizar uma rigorosa inspeção no único sanitário público da cidade. O capitão-general e governador Rodrigo Cesar de Meneses também tomou providências e exigiu a retirada dos infectados de suas casas em um período de 24 horas para a área de Tabatinguera “diante do Carmo, a última casa.” Quem desobedecesse ao mandado seria multado em 6 mil reis.
No ano seguinte, o capitão-general Meneses mandou afixar novo edital (03/09/1725) contrariando a determinação anterior. Ordenou que os médicos cuidassem apenas dos ‘bexiguentos’ com residência fixa, sob pena de serem condenados a seis meses de prisão na Fortaleza da Barra de Santos, e uma multa de 40 mil reis, dinheiro que seria doado às famílias pobres enlutadas. Além disso, estabeleceu que os doentes tratados em suas casas seriam forçados a ficar em quarentena, enquanto os sem tetos separados por mulheres brancos e negros ocupariam sobrados na Rua Boa Vista, no Centro da cidade.
Não há documentos oficiais sobre a epidemia de varíola de 1731. Considerados os principais responsáveis por este surto, pois muitos chegavam ao País já infectados, os escravos eram colocados de quarentena em locais na entrada da cidade. Os brancos também eram levados para locais mais afastados, como o Pacaembu, onde depois o governo construiu um hospital.
A peste não poupou nem mesmo os membros da Câmara. A sessão de 26 de maio de 1731, por exemplo, compareceram apenas o juiz e vereador Antonio Pinto Duarte e o procurador Pedro Taques Pires. Novos vereadores foram chamados as pressas para substituir os colegas vitimados pelas bexigas. Sem tratamento, o único método era o isolamento radical.
Luís António de Sousa 
Botelho Mourão, 
4º Morgado de Mateus 
(1722 - 1798)
A varíola estabeleceu uma trégua com a população durante trinta anos, voltando sem muita violência em 1762 e 1768. Pragas como a icterícia e a lepra começaram a ser mais frequentes a partir desta época. Juntaram-se ao mal das bexigas em 1769, constituindo-se na segunda epidemia grave do Século XVIII. Impotentes, os governadores gerais apelavam para o sobrenatural. Em 03 de novembro daquele ano, o governador Morgado de Mateus escrevia a um colega conhecido como General de Angola, sobre a sua decisão de buscar na Penha, a imagem de Nossa Senhora, para que todos os paulistanos rezassem pedindo o fim da epidemia.
Outras tentativas para debelar o mal chegaram a ser bizarras, como conta o capitão-general Martim Lopes. Em razão do excessivo estrago e mortandade, as autoridades paulistanas decidiram lançar rebanhos de bois e carneiros pelas ruas da cidade, imaginando que conseguiriam atrair a força da peste, desviando-a dos humanos.
Em 1770, o Senado endureceu na luta contra as bexigas. Chegou ao ponto de mandar um morador da Rua São Bento a retirar de sua casa, em 24 horas, quem estivesse infectado. Além disso, os senadores estabeleceram uma antiga medida de emergência, determinando que os poucos cirurgiões disponíveis na Província examinassem todos os escravos novos que chegassem à São Paulo. Os donos dos escravos contaminados eram intimados a retirá-los da cidade. Uma terceira epidemia, em 1777, levou o Senado a estipular uma multa de 50 mil réis a quem escondesse doentes em casa.
Duras, essas regras do Legislativo eram frequentemente ignoradas pela população, que não mudou de idéia nem mesmo nos surtos de 1784 e 1791. Os variolosos viviam em esconderijos, nas casas, ou mesmo nas ruas, sempre atentos a batidas promovidas por oficiais de justiça e capitães do mato a mando dos senadores. Essa resistência contribuía para que de tempos em tempos, a varíola ressurgisse ainda com mais violência.
Bernardo José Maria de Lorena e 
Silveira, 5º Conde de Sarzedas, 
(1756 - 1818)
Foi o que aconteceu em 1798, quando uma nova epidemia que começou em Santos tomou conta do território paulista. O governador Bernardo José Maria de Lorena determinou o afastamento dos infectados do Centro da Capital, o que causou protestos da população. O historiador Afonso de Taunay, autor de um profundo estudo sobre São Paulo do Século XVIII, lamentou a decisão de Lorena: “Quanto era duro e lastimoso, que pais e mães fizessem partir os filhos (e até mesmo os escravos) para lugares distantes, onde não havia professores nem remédios, temporais ou espirituais.”
Naquele mesmo ano, o cientista inglês Edward Jenner descobriu a vacina contra a varíola, que o sucessor de Lorena, o capitão-general Antônio Manoel de Castro Melo e Mendonça, se apressou em trazer para São Paulo. Os estoques do medicamento eram, contudo, insuficientes e, para piorar, houve resistência à vacinação pelos santistas e paulistanos, que temiam qualquer inovação científica. Segundo Afonso de Taunay, o sistema de inoculação empregado era mais eficiente do que em Portugal e no resto da Europa, mesmo assim, só em meados do século XIX a população aceitou o uso da vacina. A descoberta de Jenner causou a queda na incidência da varíola e as epidemias praticamente desapareceram.
Capela Velha do Ó
Semanas antes da aplicação das primeiras doses da vacina, Castro Melo e Mendonça solicitou à Câmara, que não permitisse o enterro de doentes dentro do perímetro urbano da cidade. Os que viessem a falecer no único hospital de isolamento em São Paulo, criado no Sitio do Pacaembu, deveriam ser sepultados na Capela do Ó, (na hoje, Freguesia do Ó), sob vigilância do padre João Franco da Rocha.  Os cadáveres começaram a ocupar o adro (área externa ao redor) da igreja que, em pouco tempo, ficou superlotada de pobres e escravos, as familias brancas também eram sepultadas na capela do Ó, oriundas de chácaras e sítios afastados.
No inicio de 1799, a varíola finalmente estava sob controle, desde dezembro do ano anterior nenhum doente fôra recolhido no hospital do Pacaembu. Em todas as cidades e vilas, já haviam cirurgiões que acompanhavam as ocorrências e estudavam as formas de prevenção. Como reconhecimento ao trabalho médico, o príncipe regente D. João VI determinou às Câmaras do Império, a criação de um imposto para remunerar e manter a atividade dos profissionais de saúde, bem como a intensificação da vacinação.
Quando a vacina antivariólica se estendeu até a maioria dos paulistanos, o número de infectados diminuiu consideravelmente. Ainda assim, foi registrada uma nova epidemia em 1808, vitimando muitos moradores da Capital que tinham ignorado a vacina. No período de 1799 a 1809 foram contabilizados 2.406 óbitos, sendo destes, 1.039 de varíola, quase 50% do total.
No século passado, o reaparecimento das bexigas tornou-se cada vez menos frequente. A descoberta da vacina por Jenner e as medidas preventivas tomadas pelo Governo do município a partir de 1808, contribuiram para diminuir as estatísticas da doença. A construção de um hospital militar na cidade, destinado aos soldados e escravos, e de uma chácara especial para isolamento de doentes, além de inspeções mais rigorosas dos escravos que chegavam ao núcleo colonial, possibilitaram a transformação do quadro atemorizante da saúde paulistana. Uma coisa porém é indiscutível: se não fosse o pequeno número de habitantes da São Paulo do século XVII, as epidemias de varíola teriam assumido a violência e a extensão das grandes pestes européias.
Edward Jenner (1749 - 1823)
A era das vacinas teve inicio pelas mãos do médico e cientista inglês Edward Jenner que isolou o vírus causador da varíola e descobriu um antídoto eficaz contra a doença. Jenner recolheu vários depoimentos de criadores de gado leiteiro na região de Gloucestershire, sua terra natal, sobre o contágio em seres humanos. Os fazendeiros acreditavam que a resistência ao virus da varíola humana era maior quando havia contaminação por um tipo atenuado da moléstia, causado pelo contato com o gado da raça vacum, que causava uma reação benigna no homem. Jenner resolveu testar essa hipótese em 1796, extraiu certa porção de serosidade (liquido semelhante ao soro sangüineo) do braço de uma leiteira que contraíra a varíola bovina, e a inoculou em um rapaz. O médico confiava na inoculação e, mais tarde, confirmou sua crença. O organismo do rapaz recebeu a varíola humana e não apresentou sinais da doença.
Thomas Babington 
Primeiro Barão de Macaulay 
(1800-1859)
A vacina de Jenner, contendo o vírus da varíola bovina foi um sucesso, mas nem por isso ele foi reverenciado. Ao contrário, o médico inglês quase foi eliminado da comunidade cientifica da época. O historiador britânico Thomas Macaulay chegou a definir Jenner como o “mais terrível dos ministros da morte.” Seus colegas, contudo, tiveram que se curvar ao poder da vacina.
Mais duro do que a luta contra a varíola, foi seu embate contra a ignorância e obscurantismo da época. Na Europa, a idéia das inoculações como forma de imunizar o organismo humano chocava os mais supersticiosos, que entendiam na variola um ’castigo de Deus’ ao qual ninguém tinha o direito de se opor. A reação à Jenner foi tanta, que foi tema até para charges, uma delas entitulada ‘A pústula vacinica ou o maravilhoso efeito da nova inoculação!’ Mostrando o médico inoculando pacientes com ‘vacina fresca de pústula de vaca’ enquanto várias vacas em miniatura brotam de partes dos corpos dos vacinados.
Matéria da autoria de Carlos Alberto Pacheco, publicado na Revista Já (23/11/1997).

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