João de Camargo, o milagreiro de Sorocaba, uniu espiritismo, catolicismo e cultos afros no inicio do século 20
Ritos africanos misturados a cultos católicos celebrados em latim, uma heresia ou um pacto de Deus com os Exús? O ano era 1907 e em Sorocaba, a 100 quilômetros da Capital de São Paulo só se falava de um ex-escravo chamado João de Camargo. O papa negro, como era conhecido, começava a construir sua igreja, a Capela do Bom Senhor Jesus da Água Vermelha, atraindo uma legião de fiéis. ”João incomodava muita gente, pois foi o primeiro a defender abertamente no Brasil, cultos afros e o pioneiro em manifestações negras inspiradas no espiritismo. Como seus antigos donos eram católicos, também recebeu essa influência. Utopicamente, juntou tudo que considerava de bom nessas religiões para criar uma nova” conta o médico Carlos de Campos, de 54 anos, co-autor ao lado do historiador Adolfo Frioli do livro João de Camargo de Sorocaba – O Nascimento de uma religião (editora SENAC)
A trama que documentaram teve inicio em 16 de maio de 1858, quando a escrava Francisca, que também tinha dons mediúnicos, deu a luz a João de Camargo na pequena cidade de Sarapuí, região de Sorocaba. Aos 22 anos, as margens do córrego da água vermelha em Sorocaba – onde depois seria construída a capela - João teve uma visão que mudaria sua vida: um garoto chamado Alfredo, que morrera em um acidente de cavalo em 1859, teria lhe pedido que cuidasse dos doentes que passariam a procurá-lo. Desde o episódio, reza a lenda, João passou a curar enfermos com sua fé. ”A fama dele cresceu rapidamente. Atendia qualquer um, protestante ou católico. Por isso acabou preso muitas vezes por prática de curandeirismo, mas a cada prisão, no entanto, o rebanho aumentava” explica Carlos.
Proibido de participar de cultos e eventos organizados pela igreja católica, e perseguido pelos protestantes da região que queriam converte-lo. João sempre praticou a política de boa vizinhança com os desafetos. Tanto que abriu as portas de seu templo, só concluído em 1927, para fiéis de todos os credos. Um ecumenismo também presente no altar, onde figuravam lado a lado, imagens de Jesus Cristo, Nossa Senhora, São Jorge, Nossa Senhora Aparecida, Iemanjá e até mesmo de Getúlio Vargas. A estratégia deu certo, por exemplo, os membros da irmandade de São Benedito, composta basicamente por ex-escravos e descendentes, costumavam encabeçar as procissões católicas, e sempre que o trajeto passava pela igreja do milagreiro, interrompiam a caminhada para pedir-lhe a benção. “Os brancos que vinham atrás não reclamavam, tamanho era o respeito.”
Por vezes, é claro que os poderes mediúnicos de João de Camargo geravam histórias folclóricas. A mais valorizada delas associava o milagreiro a uma invenção que no inicio do século deixava muitos de cabelo em pé: o telefone. Diziam que ele tinha um aparelho em sua capela pelo qual se comunicava diretamente com Deus, Para isso, discava 507, o diálogo, apregoavam, era mais ou menos assim: “Alô, São Pedro? Quem fala é João de Camargo, Veja se o chefe pode me atender agora...”
Exageros a parte, a fama dos poderes de João ultrapassou fronteiras. Ele virou manchete de jornais na Itália e acabou eternizado em uma das versões do Velho Preto encontrada nos artigos de casa de umbanda. ”Não é exagero dizer que ele tem a mesma importância de heróis negros, como Zumbi. Em torno de João se reuniu uma população que acabara de conquistar a liberdade e acreditava em suas palavras” analisa Campos.
Em 28 de setembro de 1942, o ex-escravo deu por concluída sua missão terrena, morreu de causas naturais. Sorocaba parou, o enterro foi acompanhado por mais de 6 mil pessoas. João não ressuscitou no terceiro dia como Cristo, mas deixou um legado que resiste até hoje. Sua igreja chega a ser visitada diariamente por cerca de 50 pessoas, especialmente as terças e quintas feiras, quando são realizadas sessões espíritas. “Ele cultuava a morte e a vida. Brindava com Deus e o Diabo. João de Camargo foi um iluminado e conseguiu chegar perto daquilo que os católicos chamam de santo”.
Reprodução parcial de matéria de autoria de Luca Fernandes, revista Já, 14/11/1999
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